18 Junho 2012
Joyce dizia a um colega: "Você faz alusão a mim como católico. Ora, por uma questão de precisão e para obter o correto contorno de mim, você deveria aludir a mim como jesuíta". Interprete-se isso como se quiser, mas me parece que a penetração psicológica e o extremo senso de relacionamento em seus livros devem muito aos Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Seu notável teste da linguagem e da forma em si mesmas não é um acidente da sua formação escolar.
Philip Harvey é editor de poesia do sítio Eureka Street, revista eletrônica dos jesuítas australianos, e presidente da Biblioteca Carmelita de Espiritualidade, de Middle Park, Victoria, na Austrália. O artigo foi publicado no sítio Eureka Street, 12-06-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A religião é definida às vezes como uma tentativa de estabelecer uma explicação mais completa da vida. Talvez seja por isso que certos artistas criativos são vistos em discordância com a religião, e suas obras como uma tentativa de estabelecer uma explicação mais completa da vida. Shakespeare é um excelente exemplo. Emily Dickinson é incompreensível sem o conhecimento do cristianismo que ela possuía. James Joyce é infame por causa de uma visão de mundo pensada como irreligiosa, se não até antirreligiosa.
Shakespeare tinha razões para manter a sua religião em âmbito privado. Dickinson era mais religiosa em suas tendências do que a sua escrita sugere. Assim como Joyce.
Afirmações de que Joyce é um escritor religioso ganharam força ao longo dos últimos anos. Alguns acreditam que isso é mais uma recuperação. Quando lemos Ulisses, a matéria da religião irlandesa decora suas páginas.
O esteta Buck Mulligan, na página 1, profere palavras da Missa de forma jocosa enquanto se barbeia; mais tarde, ele canta uma maliciosa sátira de sua autoria chamada de A balada do Jesus brincalhão. Stephen Dedalus emprega Tomás de Aquino para explicar a realidade da Strand Sandymount, uma praia na Baía de Dublin. O personagem principal, Leopold Bloom, um judeu assimilado, entra em uma igreja onde interpreta a liturgia com um efeito cômico. O único personagem no romance citado como alguém que definitivamente crê em Deus é o atrevido e adúltero Molly Bloom.
Não é de se admirar que a puritana hierarquia católica tenha se ofendido com esse quadro adverso da vida dublinense. Ele atuava contra o moralismo rigoroso que eles queriam incutir ao longo de um Estado irlandês livre e nascente.
Suprimir Ulisses na Irlanda foi uma das grandes perdas imaginativas para essa nação crescente. Foi negada uma versão da sua individualidade que demorou até os anos 1980 para ser descoberta. Mas foi também uma perda religiosa. Inegavelmente, Joyce trabalhou para minar e questionar o catolicismo dominante da sua formação, mas isso é algo muito diferente de dizer que ele se opunha à religião, ou que não tinha nenhuma sensibilidade religiosa.
Literatura como Ulisses não se dá a esteriotipações. Mulligan acaba se revelando um crente wildeano [de Wilde] no helenismo, que prega uma forma ilusória de classicismo irlandês. Dedalus rejeita o sacerdócio, preferindo, ao contrário, o sacerdócio da criação artística. Ele procura uma figura paterna que possa libertar o dilema do seu próprio intelectualismo frustrado.
Essa figura acaba sendo Bloom, alguém que se debate com a herança conflitante do utopismo científico e o anseio judaico. Sua esposa, Molly, é ela mesma uma força de vida, uma amante do mundo que aprecia cada momento da existência, quaisquer que sejam suas circunstâncias presentes.
Os personagens aprofundam em cada releitura, razão pela qual o Bloomsday é celebrado como um dia de festa literário secular todos os dias 16 de junho. O romance honra a complexidade de Dublin, incluindo as possibilidades da sua religião. Longe de evitar as dúvidas e as hipocrisias dos dublinenses, Joyce os coloca no centro do palco, para representar as nossas certezas e incertezas.
Esse livro seria um bicho-papão para aqueles da Igreja e do Estado que tentavam introduzir uma uniformidade de crença para todas as pessoas na Irlanda. Joyce não estava apenas dizendo que a religião irlandesa tinha uma história fora do cristianismo, mas que o seu catolicismo perdera a conexão com as tradições célticas passadas. O romance é uma celebração dos sentidos, do corpo como uma maravilha em si mesmo, em todos os seus processos, e da própria consciência cristã de que tudo isso é algo que cresce em significado ao ser partilhado com os outros.
Um pioneiro dessa elevação de Joyce como escritor religioso é o atual abade da Abadia de Glenstal, em Limerick, John Patrick Hederman. Em seu livro The Haunted Inkwell, Hederman diz que a obra de Joyce é "uma vida de busca pela palavra: não a palavra da encarnação, que permitiria que a sua palavra se fizesse carne da forma mais satisfatória e esteticamente agradável, mas a palavra da ressurreição – sua carne feita palavra e restaurada à vida".
A visão religiosa de Joyce fica ainda mais intensa naquele labirinto macarrônico que é Finnegans Wake. O poeta Seamus Deane argumentou que Wake é um resultado final da busca do século XIX por uma chave para todas as mitologias, representada por figuras como Sir James Frazer e, no século XX, por Carl Jung e Mircea Eliade.
A solução de Joyce não seria acadêmica. Nós herdamos um "romance" que é inclassificável, uma babel balbuciante de surpreendente inventividade verbal, que reconta as lendas do Oriente e do Ocidente em um ciclo contínuo de morte e de ressurreição, isto é, fin agains wake.
É uma narrativa impetuosa, como se sabe, e a minha atitude sempre foi a de mergulhar em vez de me molhar. Será que Joyce escreveu Wake para testar a interpretação estrita dos literatos e dos clérigos dogmáticos?
Não há dúvida de que a religião como meio de compreensão humana é central. Há muita diversão em Finnegans Wake, que em um neologismo Joyce chama de "funferal" [jogo de palavras entre fun, diversão, e funeral].
Nenhuma dessas obras-primas existiria na sua forma final sem a educação do jesuíta Joyce. Joyce é um dos produtos verdadeiramente grandes desse método educativo, com o seu respeito pela educação clássica, sua propensão pela criação de estruturas extraordinárias de categorização e com a sua culta habilidade em fazer todos os tipos de conexões improváveis.
Perguntou-se a Joyce uma vez por que ele deu tantos problemas aos seus mestres jesuítas em seus romances, ao que ele respondeu que eles são os únicos que podem lidar com isso. Outra vez, ele disse a um colega: "Você faz alusão a mim como católico. Ora, por uma questão de precisão e para obter o correto contorno de mim, você deveria aludir a mim como jesuíta".
Interprete-se isso como se quiser, mas me parece que a penetração psicológica e o extremo senso de relacionamento em seus livros devem muito aos Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Seu notável teste da linguagem e da forma em si mesmas não é um acidente da sua formação escolar.
O próprio Jung disse que "há profetas maiores e menores, e a história irá decidir a qual deles Joyce pertence. Como todo verdadeiro profeta, o artista é o porta-voz inconsciente dos segredos psíquicos do seu tempo e muitas vezes é tão inconsciente quanto um sonâmbulo. Ele supõe que é ele quem fala, mas o espírito da época é o seu instigador, e o que quer que esse espírito diga é provado como verdadeiro pelos seus efeitos".
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O desafio à Igreja do ''jesuíta'' James Joyce - Instituto Humanitas Unisinos - IHU